Relação entre liderança, método científico e resultados das eleições
O artigo tenta mostrar como o uso de método científico, pensamento crítico e pensamento estatístico podem ajudar a desvendar alguns “mistérios” que acontecem no dia a dia. Recente artigo publicado no UOL tem o título “Votação estável ao longo da apuração não indica fraude em São Paulo”. A mente humana é complicada, tudo aquilo que não bate com nossos paradigmas é fraude ou enganação.
O grande problema é que não estamos muito acostumados a lidar com raciocínios que envolvam pensamento estatístico. O cientista de dados Hans Rosling mostra em uma palestra TED que quando se trata de estatística, nós humanos muitas vezes perdemos de lavada para os macacos.
Exemplo: assinale a resposta mais próxima para a seguinte questão, se reúno um grupo de 20 pessoas,
Qual é a chance que duas pessoas façam aniversário na mesma data (dia e mês)?
E como responderia um grupo de macacos que tentasse adivinhar onde está o cacho de bananas?
As respostas dos macacos serão aleatórias. Eles não sabem fazer cálculos estatísticos, logo, como querem a banana e não sabem onde está, metade deles irá procurar na cumbuca da esquerda e metade irá na cumbuca da direita. Como nós “humanos sabidos” conseguimos fazer cálculo, a maioria escolherá a opção da esquerda. Quem se aproximou mais da resposta certa? Os macacos! A probabilidade que em um grupo de 20 pessoas, duas façam aniversário na mesma data é 41%.
Vendo a questão pela ótica de Daniel Kahneman, prêmio Nobel de economia, nosso cérebro tende a trabalhar da forma mais preguiçosamente possível. Em “Rápido e Devagar” o autor separa o pensamento das pessoas de duas formas:
⦁ Intuitiva, rápida e emocional. Exemplo, quando perguntamos qual o resultado da soma 1+1, isso é algo fácil e simples. A resposta é intuitiva e, desse modo, a pessoa estará utilizando o pensamento rápido, intuitivo e emocional. O motivo desta resposta rápida é que não há nenhum trabalho em achar a resposta. Não faz sentido fazer um trabalho mais aprofundado. A resposta é óbvia.
⦁ Lenta, lógica e deliberativa. Se a pergunta for 27 x 29 qualquer pessoa normal necessitará mais que poucos alguns segundos para responder. Nesse caso a pessoa necessitou utilizar a forma de pensamento mais lenta, mais lógica e deliberativa.
Por conta desta separação, diversas áreas, como psicologia, medicina, economia e política, são afetadas. O problema é que em muitos casos em que precisaríamos usar um raciocínio mais lento, o nosso “eu preguiçoso” toma um atalho e conclui usando a forma de pensar intuitiva e rápida! E quebramos a cara, embora muitas vezes nem percebemos disso!
O problema das eleições
Veja a mensagem de WhatsApp citada na matéria do UOL na Figura 1. Ela questiona a constância das porcentagens de pessoas que votaram em Covas, Boulos, França e Russomano, mesmo quando mudam as porcentagens de apuração de 0,39%, 37,7%, 57,77% até 99,92%.
As duas formas de pensar (rápida e devagar) estão associadas com o uso (ou ausência de uso) do método científico:
⦁ Forma rápida (Figura 2): Pulo da observação para a conclusão, sem muito uso de pensamento crítico ou pensamento estatístico. É um caminho simples, rápido e… muitas vezes, errado!
⦁ Método científico (Figura 3): caminho correto, mas é trabalhoso, demorado, chato. Usa dados e fatos.
Tenha em mente que não é errado usarmos a forma rápida de pensar: se estamos atravessando a rua e um carro surge a toda velocidade, a forma mais esperta de atuar será a rápida e intuitiva! O problema aparece quando temos um problema que pede a forma de pensar lenta, lógica e deliberativa da opção “b” e continuamos usando o modelo intuitivo, rápido e emocional da opção “a”.
Usando o método científico no caso das eleições
Voltemos ao caso das eleições. Se analisamos os dados da Figura 1 com a forma rápida de pensar da Figura 2, uma possível conclusão é: “não faz sentido que uma amostra de 0,39% da população de eleitores dê o mesmo resultado que uma amostra de 37,77%, 57,77% ou 99,92%. Logo, há algo estranho!
Entretanto, um raciocínio simples para desmontar essa conclusão de que os dados são estranhos é o seguinte: se mal podemos confiar no resultado de uma amostra com 0,39% de votantes apurados (ou ainda, se os resultados de amostras com 0,39% e 37% não podem ser iguais), como é que o pessoal que faz pesquisas tira tantas conclusões com amostras de tamanho nove vezes menor? Note que as pesquisas coletam informação de 2.000-3.000 pessoas, o que representa entre somente 0,023% a 0,033% dos eleitores da cidade de SP! Pois é, estatística é algo interessante, não é?
Usemos agora a forma lenta de pensar.
Etapa 1 do método científico: Definir o problema e suas variáveis
Há chance que numa população de 8.986.687 eleitores, as porcentagens de votos nos quatro maiores candidatos mostrem a constância da Figura 1?
Etapa 2 do método científico: Sugerir uma possível explicação ou solução
A reportagem do UOL menciona: “O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) explicou que a estabilidade no percentual de votos em candidatos durante a totalização não constitui indício de fraude e indica apenas homogeneidade nos votos recebidos durante a totalização”. Isto é bem factível e pode ser checado.
Etapa 3 do método científico: Coletar informação e testar as hipóteses
Usaremos a premissa do TSE e faremos uma análise reversa. Como neste caso conhecemos a “verdade”, ou seja, a porcentagem final de votantes em cada candidato (quando a apuração estava em 99,92%) partiremos dessas porcentagens e construiremos intervalos de confiança de 95% em cada momento da apuração para checar quais seriam os intervalos esperados em cada momento. O intervalo de confiança de uma proporção se calcula como:
Onde Linf é o limite inferior do intervalo, Lsup é o limite superior do intervalo, p é a proporção recebida por cada votante (no fim da eleição, ou seja quando a apuração estava em 99,92%), n é o tamanho de amostra contabilizado a cada momento (ou seja, quando a apuração estava em 0,39%, 37,77% e 57,77%) e, finalmente, Z é o percentil da distribuição normal padrão que permite construir o intervalo de 95% de confiança (= 1,96). Estatisticamente as quatro proporções não são independentes, mas o erro na conclusão por essa suposição é pequeno.
O número de votantes na cidade de SP é 8.986.687. A partir desta informação podemos calcular o número de eleitores contabilizados ao longo da apuração (em cada momento da Tabela 1). Como observou meu amigo Geovane Gomes, deve-se descontar a abstenção, que foi de 29,29% quando a apuração estava em 99%.
Tabela 1 – Amostra analisada pelo TRE-SP em cada momento
Sem fazer nenhum cálculo já podemos extrair uma conclusão importante. O tamanho de amostra quando a apuração estava em 0,39% é mais de 7 vezes superior ao tamanho de amostra usado normalmente em pesquisa eleitoral (= 3000 pessoas)! Logo, já com 0,39% teremos uma estimativa muito boa da verdade (como foi mencionando previamente).
A Tabela 2 abaixo tem os limites inferiores e superiores esperados em cada momento e a Tabela 3 tem os valores observados em cada momento da apuração (aqueles que estão na mensagem do WhatsApp). Em azul são valores que ficaram dentro dos intervalos de confiança, conforme previsto estatisticamente. Em laranja, um valor que ficou fora do intervalo, mas próximo do limite superior (candidato Boulos). Em vermelho há somente um valor que ficou afastado do previsto no intervalo (candidato Boulos).
Tabela 2 – Intervalos de confiança esperados em cada momento da apuração
Tabela 3 – Valores apurados ao longo do processo
Etapa 4 do método científico. Interpretar os resultados
As Figuras 4 a 7, dedicadas aos quatro primeiros colocados na eleição, mostram:
⦁ Os intervalos de confiança esperados ao variar a porcentagem de apuração entre 0,035% e 99,9% a cada momento da apuração, usando a Equação 1 mencionada anteriormente (linhas azuis que diminuem conforme um funil com a boca aberta a esquerda). Como era de se esperar (pode olhar na fórmula!), à medida que o tamanho da amostra aumenta (aumenta a porcentagem de apuração) a incerteza em torno do valor verdadeiro diminui.
⦁ O valor final anunciado pelo TRE-SP (linha reta horizontal azul), quando a apuração estava em 99,92%.
⦁ Valores anunciados para cada candidato ao longo da apuração (pontos vermelhos). O último ponto foi colocado em preto porque ele sempre vai coincidir com a linha azul central, já que é ponto na apuração final!
⦁ A amplitude da escala de todos os gráficos foi mantida em 2%.
Conclusão: a comparação entre o esperado pela estatística (funil) e o anunciado a cada momento tem uma coincidência extremamente boa (pontos vermelhos dentro do funil ou muito próximo dele), e não permite inferir qualquer tipo de anormalidade no processo eleitoral. Há um único caso de valor mais discrepante para Boulos; quando a apuração estava em 57,77% ele subiu mais do que o esperado, mas logo depois, caiu novamente.
Nem sempre a estabilidade ao longo da apuração será similar à observada neste caso. Um exemplo se encontra na votação nos EUA em que o tipo de voto (correio vs presencial) fez mudar radicalmente a apuração. O caso de São Paulo mostra uma situação de distribuição homogênea dos votos, confirmado pelo fato que Covas venceu em todas as zonas eleitorais de São Paulo%.
O que aprendemos desse episódio
“ Não acredite em algo pelo fato de ter ouvido a respeito; Não acredite em tradição pelo simples fato dela estar em uso há várias gerações; Não acredite em algo pelo fato de já ter sido falado a respeito inúmeras vezes; Não acredite em conjecturas; Não acredite em Autoridades ou Mestres pela sua condição…. Mas após uma cuidadosa observação e análise, e se a questão em análise concorda com a razão, e ainda mais, tenha a condição de gerar benefícios a alguém ou para todos, então aceite-a e viva por ela”
Buda (563ac – 483 ac)
Esta discussão nos mostra que a utilização do método científico é essencial para a gestão do dia a dia num mundo cada vez mais cheio de dados. O grande problema atual é que se fala de indústria 4.0, de inteligência artificial, e de power BI, mas a liderança está muito, muito, muito longe de conseguir fazer qualquer coisa com essa quantidade incrível de informação que nos chega no dia a dia. Continuamos com o paradigma do pensamento simples: observo um evento extraio uma conclusão… simples assim!
O mapa mental da Figura 8 mostra a ligação de alguns ingredientes que fazem um bom líder:
⦁ Nesta caminhada podemos retroceder à 2ª guerra mundial. Os Estados Unidos estavam sem mão de obra para suas fábricas (os homens foram para a guerra) e era necessário treinar muitas mulheres para lidar com problemas complexos nas fábricas. Surgiu uma organização que existe ainda hoje (TWI: Training Within Industry) que treinou milhões de pessoas em curto espaço de tempo em três questões, todas elas usando métodos científico: a) Como treinar pessoas, b) como melhorar processos, c) como fazer gestão das pessoas.
⦁ Depois da 2ª guerra, Japão destruído, a TWI ensinou aos japoneses esses três métodos.
⦁ Esses métodos formaram a base do lean. Toyota agregou um quarto método, como trabalhar com segurança.
⦁ Todos estes métodos usam o método científico.
⦁ O método científico requer o uso de dois irmãozinhos! O pensamento crítico e o pensamento estatístico. Já vimos um exemplo do pensamento estatístico. O pensamento crítico tem vários princípios, um deles é não acreditar em autoridades ou mestres pela sua condição (como já expressava Buda faz um tempo atrás). É muito comum fazer raciocínios do seguinte tipo:
⦁ Argumento de autoridade: Dennis Ritchie, inventor da linguagem C, diz que o aumento da temperatura na terra … etc etc etc (isto não é verdade, é um exemplo figurado). Fique vacinado com esse argumento!
⦁ E daí que ele tenha sido inventor da linguagem C?
⦁ Quais são os argumentos que provam a afirmação da temperatura?
⦁ Outros exemplos do “argumento de autoridade”: confie em Clinton porque é o Presidente, ou confie no juiz porque é o juiz, ou no presidente da empresa… porque é o presidente da empresa.
⦁ Ad hominem (‘ao homem’): atacar a pessoa e não seu argumento.
⦁ Apelo à ignorância: algo que não foi provado falso deve ser verdadeiro.
⦁ Presumir o resultado: Por exemplo, precisamos instituir a pena de morte para diminuir a criminalidade.
⦁ Finalmente, o pensamento estatístico requer que você aprenda a lidar com variabilidade.
Se você traça uma simples linha de tendência no Excel e conclui que o processo está aumentando ou diminuindo, você não está usando o pensamento estatístico. Tem que conhecer primeiro se a tendência é estatisticamente significativa, se o modelo ajusta bem os dados…
Pontos finais:
⦁ Caso tenha comentários sobre o artigo, envie para nós! Será um prazer receber seu feedback.
⦁ Caso queira checar os cálculos, podemos enviar arquivo Excel.
Referências
KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
¹Disponível em: https://noticias.uol.com.br/comprova/ultimas-noticias/2020/11/17/votacao-estavel-ao-longo-da-apuracao-nao-indica-fraude-em-sao-paulo.htm. Acesso em: 18 nov.2020
²Disponível em: https://www.ted.com/talks/hans_rosling_the_best_stats_you_ve_ever_seen#t-135667. Acesso em: 18 nov. 2020.
³Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/eleicoes-2020/noticia/2020-11/com-33-milhoes-de-eleitores-sp-e-maior-colegio-eleitoral-do-brasil. Acesso em: 19 nov. 2020.
⁴Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/eleicoes/2020/noticia/2020/11/16/cidade-de-sp-registra-abstencao-recorde-no-primeiro-turno-das-eleicoes-2020.ghtml. Acesso em: 18 nov. 2020.
⁵Disponível em: https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/11/16/covas-vence-em-todas-as-regioes-boulos-chega-perto-no-centro-e-no-capao.htm. Acesso em: 19 nov. 2020.
Carlos Domenech
Master Black Belt, consultor e CEO da MI Domenech
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